Logo que entrei no bar da Avenida
São João, notei aquela figura de vestes esvoaçantes e corpo voluptuoso. Uma mulher de traços rústicos e perfeitos,
como esculpida por deuses. Linda. Cabelos negros escorriam como uma fonte em
seus ombros cálidos e expostos pela falta de pano do vestido. A pele morena.
Nem tão negra nem tão branca. Morena. Bela.
Estava sentada ao lado de um
homem negro e de trajar fino, que sempre estava acomodado no mesmo local do
diminuto reduto boêmio paulista. Se não me enganava, chamava-se Silveira. Mas
não sei. Pode ser Silvio ou qualquer outro nome. Nunca troquei uma palavra com aquele
homem. No máximo pedi um cigarro alguma vez.
Sentei em um banco qualquer do
recinto. Não era como Silveira. Ou Silvio, sei lá, que estava sempre sentado no
mesmo lugar, naquele desconfortável banco de madeira. Hoje observando os risos da mulher
ao lado seu lado. Observei que ao lado do homem encontrava-se um chapéu Panamá e acomodado no braço da
cadeira, estava um velho violão. O homem era cantor. Provavelmente sambista. Devia
estar contando mentiras para a mulher. Dizendo ser um grande compositor. Dizendo
que compôs aqueles sambas da rádio. Só pra levar a mulher pra casa. Certeza.
Chamei o Figueirinha, garçom
antigo do bar, e depois de pedir a pinga inicial, indaguei sobre a moça sentada
ao lado do sambista. O meu velho colega de boemia hesitou em dar informações
sobre ela. Disse que tinha que preservar a identidade de seus clientes. Tirei
uma moeda de cem réis da carteira e coloquei no bolso de sua camisa branca.
Figueirinha sorriu, o que fez levantar seu pequenino bigode. E desatou a falar
da moça. Disse que nunca tinha aparecido ali, mas que Silveira (acertei o
nome!) fez uma baita propaganda sua para a jovem moça, dizendo ser um conhecido
sambista. Que tinha tocado violão com Noel e Assis Valente. Tudo mentira.
Motorista de bonde era a sua verdadeira profissão. Mas Figueirinha afirmou, com sobriedade, de que
a moça era só uma conhecida do sambista. Mas era melhor não mexer.
Depois de adquirir a ficha
completa da moça, continuei a fitá-la enquanto bebia minha onipresente pinga. A
cada segundo olhando-a, meu amor e desejo cresciam mais por ela. Nunca havia
visto tamanha beleza em um só ser. Enquanto observava, Silveira tirou o violão
da sacola e desatou a tocar um acordes sem-vergonhas. Nem sabia tocar direito.
Mas a menina, que provavelmente não conhecia nada de samba, sorria e suspirava
a cada acorde que o ‘sambista’ fazia nascer de seus dedos. Não suportei.
Chamei Fagundes, amigo e sambista
que sempre carregava um violão a tiracolo, e perguntei se podia me emprestar o
instrumento o mais rápido possível. Enquanto buscava o violão, notei que
Silveira estava dedilhando mediocremente o samba - marcha “Com que roupa?”, do
jovem compositor carioca Noel Rosa, que há muito havia morrido. Jovem, coitado.
Quando Fagundes chegou com o instrumento, coloquei no colo e me preparei pra
começar a tocar. Esperei um acorde bom pra dar início ao duelo de violões.
Quando Silveira voltou ao refrão (Com que roupa, eu vou?/ Pro samba que você me
convidou) comecei a tocar também.
Silveira continuou dedilhando e
olhou pra mim. A moça parou de sorrir para o pseudo-sambista e olhou pra mim. O bar parou e olhou pra mim. Parecia que o mundo havia parado o que estava
fazendo e começou a me observar. Mas não me encabulei. Continuei a enfrentar
Silveira, que estava tocando seus acordes sem-vergonhas e sem uma correta noção
da música. A moça, após um tempo, saiu do lado de seu ex-ideal de sambista e sentou-se em uma
cadeira grudada à minha. Pronto.
Silveira parou de dedilhar instantaneamente seu instrumento e viu que não havia
chances com a jovem. Guardou-o em seu estojo de couro e foi embora, sem se
despedir de ninguém, apenas deixando uma nota de cinqüenta mil réis no tampo da
mesa de madeira carcomida. E meu samba já estava em marcha e fazendo os boêmios
do reduto cantarem juntos. A jovem me observava com um belo sorriso nos lábio
que me fez tocar melhor ainda. Esse era o meu momento. E eu tinha que aproveitá-lo.
Quando finalmente terminei o
samba, todos que estavam me ouvindo no reduto aplaudiram, e os que conseguiam,
aplaudiram de pé. A jovem veio então mais perto de mim e me disse em sussurros
no ouvido:
- Amei. Você toca muito bem. Nos
vemos amanhã?
Não consegui responde de
imediato. Sua beleza me fascinava e não me deixava ser quem eu era. Balbuciei
algumas palavras sem compreensão e ela me disse que estaria ali no dia seguinte,
por volta das 18h. Virou-se e seguiu em direção à porta. Só deu tempo de me
levantar e perguntar seu nome.
- Meu nome é Iracema.
Lindo. Nome da índia de José
Alencar. Um livro que sempre odiei, mas que naquele momento passei a amar.
Iracema. Esse era o nome da minha amada. Da mulher da minha vida. Quando virei
de volta para minha mesa para tomar um gole de pinga, percebi um papel ao seu
lado. Era um retrato da jovem Iracema. No momento estranhei e perguntei-me o
porquê de uma jovem deixar um retrato seu a um desconhecido. E pior, o porquê
de uma jovem ficar andando em um bar com retratos seus no bolso. Aí que me
toquei.
No canto do bar estava Simão, um
amigo desenhista. Ele deve ter percebido a minha fascinação pela moça e
aproveitou e fez um retrato. Assim poderia guardá-la em meu coração para o
resto de minha vida. Acenei para Simão e li em seus lábios que ele havia dito:
- Essa é cortesia da casa...
Dobrei o retrato e guardei-o em
meu bolso do paletó. Continuei bebendo, mas tinha ideia de sair mais cedo e
chegar em casa antes do dia raiar. Amanhã teria que estar cedo ali para ver
Iracema.
Quando era por volta das 3h, sai
do bar um pouco tanto pelo álcool em meu sangue e segui para minha residência.
Na metade do caminho senti vontade de ver meu amor. Como não podia vê-la
pessoalmente, peguei o retrato e parei. Fiquei observando os traços de Simão e
relembrando a pele, o cheiro de Iracema. Durante os vários minutos que fiquei
parado no meio da rua, não aconteceu nada. Até que uma brisa matinal soprou e
foi mais forte que minhas mãos. O retrato de Iracema voou. E eu fiquei ali,
impotente, vendo Iracema voar nas mãos da natureza.
No dia seguinte acordei o mais
cedo possível e fui direto para o bar na Avenida São João. Eram 15h e já estava
aguardando minha amada Iracema. O tempo não passava, mas os petiscos servidos
em minha mesa evaporavam como água em dia quente de verão. Quando o relógio de
madeira encostado na parede tocou as seis badaladas, virei imediatamente meu
rosto e meu olhar na direção da avenida. Ela iria chegar a qualquer momento.
E chegou.
Dez minutos depois do combinado,
Iracema apareceu do outro lado da rua e acenou em minha direção. Até olhei para
trás, pensando que ela podia estar sendo amável com outra pessoa, mas não. Ela
acenou para mim. Começou a atravessar a rua, bela e esbelta. Só que aconteceu o
que não poderia acontecer. Um bonde veio em sua direção e a atirou do outro
lado da rua. Iracema bateu a cabeça na guia e faleceu no mesmo instante. Só
tive tempo de olhar para o motorista do bonde. Um homem negro e do porte de um
conhecido. Silveira. Ele matou Iracema.
Meus olhos marejaram perante o
acontecido. Iracema, que vinha direto em meus braços, morreu pouco antes de eu
poder falar como eu a amava. Fiquei louco. Aos sons de burburinhos que diziam
que o motorista não teve culpa. Que Iracema estava distraída. Que Iracema atravessou
contramão. Rapidamente, peguei seus sapatos, que haviam sido atirados longe com a força do impacto. As únicas coisas que
poderia guardar de recordação, já que, Iracema, eu perdi o seu retrato.
Essa sua visão é uma forma para contar o que de fato aconteceu.
ResponderExcluirNa minha óptica, faltavam sete dias "...pro nosso casamento que nóis ia se casa"......"O choffer não teve curpa Iracema, pacensa, pacensa.....
Abraço
Continue.