quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os contos de Adoniran

Sempre imaginei as músicas de Adoniran em forma de crônicas. Seriam perfeitas. As histórias nas músicas do compositor paulista são incríveis e dariam ótimos contos. Por isso, comecei a escrevê-los. Após muito tempo de 'Iracema' estar pronto, resolvi publicá-lo e registrá-lo. Os próximos, se houver uma boa recepção e avaliação de quem os ler, serão publicados em breve aqui no blog. Este conto é de minha autoria e baseado, claro, na música 'Iracema', de Adoniran Barbosa. O vídeo abaixo pode dar uma noção da música a quem nunca a ouviu. Espero que gostem!




IRACEMA

Logo que entrei no bar da Avenida São João, notei aquela figura de vestes esvoaçantes e corpo voluptuoso.  Uma mulher de traços rústicos e perfeitos, como esculpida por deuses. Linda. Cabelos negros escorriam como uma fonte em seus ombros cálidos e expostos pela falta de pano do vestido. A pele morena. Nem tão negra nem tão branca. Morena. Bela.
Estava sentada ao lado de um homem negro e de trajar fino, que sempre estava acomodado no mesmo local do diminuto reduto boêmio paulista. Se não me enganava, chamava-se Silveira. Mas não sei. Pode ser Silvio ou qualquer outro nome. Nunca troquei uma palavra com aquele homem. No máximo pedi um cigarro alguma vez.
Sentei em um banco qualquer do recinto. Não era como Silveira. Ou Silvio, sei lá, que estava sempre sentado no mesmo lugar, naquele desconfortável banco de madeira. Hoje observando os risos da mulher ao lado seu lado. Observei que ao lado do homem encontrava-se um chapéu Panamá e acomodado no braço da cadeira, estava um velho violão. O homem era cantor. Provavelmente sambista. Devia estar contando mentiras para a mulher. Dizendo ser um grande compositor. Dizendo que compôs aqueles sambas da rádio. Só pra levar a mulher pra casa. Certeza.
Chamei o Figueirinha, garçom antigo do bar, e depois de pedir a pinga inicial, indaguei sobre a moça sentada ao lado do sambista. O meu velho colega de boemia hesitou em dar informações sobre ela. Disse que tinha que preservar a identidade de seus clientes. Tirei uma moeda de cem réis da carteira e coloquei no bolso de sua camisa branca. Figueirinha sorriu, o que fez levantar seu pequenino bigode. E desatou a falar da moça. Disse que nunca tinha aparecido ali, mas que Silveira (acertei o nome!) fez uma baita propaganda sua para a jovem moça, dizendo ser um conhecido sambista. Que tinha tocado violão com Noel e Assis Valente. Tudo mentira. Motorista de bonde era a sua verdadeira profissão.  Mas Figueirinha afirmou, com sobriedade, de que a moça era só uma conhecida do sambista. Mas era melhor não mexer.
Depois de adquirir a ficha completa da moça, continuei a fitá-la enquanto bebia minha onipresente pinga. A cada segundo olhando-a, meu amor e desejo cresciam mais por ela. Nunca havia visto tamanha beleza em um só ser. Enquanto observava, Silveira tirou o violão da sacola e desatou a tocar um acordes sem-vergonhas. Nem sabia tocar direito. Mas a menina, que provavelmente não conhecia nada de samba, sorria e suspirava a cada acorde que o ‘sambista’ fazia nascer de seus dedos. Não suportei.
Chamei Fagundes, amigo e sambista que sempre carregava um violão a tiracolo, e perguntei se podia me emprestar o instrumento o mais rápido possível. Enquanto buscava o violão, notei que Silveira estava dedilhando mediocremente o samba - marcha “Com que roupa?”, do jovem compositor carioca Noel Rosa, que há muito havia morrido. Jovem, coitado. Quando Fagundes chegou com o instrumento, coloquei no colo e me preparei pra começar a tocar. Esperei um acorde bom pra dar início ao duelo de violões. Quando Silveira voltou ao refrão (Com que roupa, eu vou?/ Pro samba que você me convidou) comecei a tocar também.
Silveira continuou dedilhando e olhou pra mim. A moça parou de sorrir para o pseudo-sambista e olhou pra mim.  O bar parou e olhou pra mim.  Parecia que o mundo havia parado o que estava fazendo e começou a me observar. Mas não me encabulei. Continuei a enfrentar Silveira, que estava tocando seus acordes sem-vergonhas e sem uma correta noção da música. A moça, após um tempo, saiu do lado de seu ex-ideal de sambista e sentou-se em uma cadeira grudada à minha.  Pronto. Silveira parou de dedilhar instantaneamente seu instrumento e viu que não havia chances com a jovem. Guardou-o em seu estojo de couro e foi embora, sem se despedir de ninguém, apenas deixando uma nota de cinqüenta mil réis no tampo da mesa de madeira carcomida. E meu samba já estava em marcha e fazendo os boêmios do reduto cantarem juntos. A jovem me observava com um belo sorriso nos lábio que me fez tocar melhor ainda. Esse era o meu momento. E eu tinha que aproveitá-lo.
Quando finalmente terminei o samba, todos que estavam me ouvindo no reduto aplaudiram, e os que conseguiam, aplaudiram de pé. A jovem veio então mais perto de mim e me disse em sussurros no ouvido:
- Amei. Você toca muito bem. Nos vemos amanhã?
Não consegui responde de imediato. Sua beleza me fascinava e não me deixava ser quem eu era. Balbuciei algumas palavras sem compreensão e ela me disse que estaria ali no dia seguinte, por volta das 18h. Virou-se e seguiu em direção à porta. Só deu tempo de me levantar e perguntar seu nome.
- Meu nome é Iracema.
Lindo. Nome da índia de José Alencar. Um livro que sempre odiei, mas que naquele momento passei a amar. Iracema. Esse era o nome da minha amada. Da mulher da minha vida. Quando virei de volta para minha mesa para tomar um gole de pinga, percebi um papel ao seu lado. Era um retrato da jovem Iracema. No momento estranhei e perguntei-me o porquê de uma jovem deixar um retrato seu a um desconhecido. E pior, o porquê de uma jovem ficar andando em um bar com retratos seus no bolso. Aí que me toquei.
No canto do bar estava Simão, um amigo desenhista. Ele deve ter percebido a minha fascinação pela moça e aproveitou e fez um retrato. Assim poderia guardá-la em meu coração para o resto de minha vida. Acenei para Simão e li em seus lábios que ele havia dito:
- Essa é cortesia da casa...
Dobrei o retrato e guardei-o em meu bolso do paletó. Continuei bebendo, mas tinha ideia de sair mais cedo e chegar em casa antes do dia raiar. Amanhã teria que estar cedo ali para ver Iracema.
Quando era por volta das 3h, sai do bar um pouco tanto pelo álcool em meu sangue e segui para minha residência. Na metade do caminho senti vontade de ver meu amor. Como não podia vê-la pessoalmente, peguei o retrato e parei. Fiquei observando os traços de Simão e relembrando a pele, o cheiro de Iracema. Durante os vários minutos que fiquei parado no meio da rua, não aconteceu nada. Até que uma brisa matinal soprou e foi mais forte que minhas mãos. O retrato de Iracema voou. E eu fiquei ali, impotente, vendo Iracema voar nas mãos da natureza.

No dia seguinte acordei o mais cedo possível e fui direto para o bar na Avenida São João. Eram 15h e já estava aguardando minha amada Iracema. O tempo não passava, mas os petiscos servidos em minha mesa evaporavam como água em dia quente de verão. Quando o relógio de madeira encostado na parede tocou as seis badaladas, virei imediatamente meu rosto e meu olhar na direção da avenida. Ela iria chegar a qualquer momento.
E chegou.
Dez minutos depois do combinado, Iracema apareceu do outro lado da rua e acenou em minha direção. Até olhei para trás, pensando que ela podia estar sendo amável com outra pessoa, mas não. Ela acenou para mim. Começou a atravessar a rua, bela e esbelta. Só que aconteceu o que não poderia acontecer. Um bonde veio em sua direção e a atirou do outro lado da rua. Iracema bateu a cabeça na guia e faleceu no mesmo instante. Só tive tempo de olhar para o motorista do bonde. Um homem negro e do porte de um conhecido. Silveira. Ele matou Iracema.
Meus olhos marejaram perante o acontecido. Iracema, que vinha direto em meus braços, morreu pouco antes de eu poder falar como eu a amava. Fiquei louco. Aos sons de burburinhos que diziam que o motorista não teve culpa. Que Iracema estava distraída. Que Iracema atravessou contramão. Rapidamente, peguei seus sapatos, que haviam sido atirados longe com a força do impacto. As únicas coisas que poderia guardar de recordação, já que, Iracema, eu perdi o seu retrato.

Um comentário:

  1. Essa sua visão é uma forma para contar o que de fato aconteceu.
    Na minha óptica, faltavam sete dias "...pro nosso casamento que nóis ia se casa"......"O choffer não teve curpa Iracema, pacensa, pacensa.....
    Abraço
    Continue.

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